Direita: direito, reivindicação, nemesis política
Humana: ego, compaixão, imperfeição
Várias coisa sem ligacao
Todos os dias às 7h da noite a electricidade vai ao ar e uma rotina estranhamente previsivel ao segundo acontece: tchak tchak tchak tchak tchak (Ramesh, o guarda corre a chinelar até ao gerador), wrruuuuummmmmmmm (o gerador a funcionar), tchak tchak tchak tchak (Ramesh o guarda corre até ao quadro da electricidade ao lado do portao), clac (Ramesh, o guarda, puxa a manivela da electricidade para baixo), blink (a luz volta).
Todos os dias parto-me a rir com o senhor que conduz o carro do H, o Mister Musa, que diz "thank you very good" em vez de "thank you very much", "hotel" em vez de "restaurant" e "wife" em vez de "woman". E cada vez que passa um senhor com a barba à Taliba, turbante e casaco colorido, diz sempre: "mullah" e desata-se a rir. Nao sei bem o que pensar. No outro dia, o H apareceu-lhe de manha com gel no cabelo, que dá aquele efeito despenteado que está na moda na Europa. Mister Musa olha para ele, remexe no bolso da túnica, saca um pente, mostra-lho e diz "broom?" (o que quer dizer vassoura e nao pente, que é "comb")
Em qualquer texto, sempre que o profeta vem mencionado (o que acontece para tudo) vem sempre o acrónimo PBUH - "Peace Be Upon Him" (paz esteja com ele).
No cabecalho de qualquer papel oficial, do recibo da loja de electrodomésticos às minutas de reunioes do governo, vem o enigmático numero 786 - quer dizer que Allah nos abencoa.
O termo burqa, estranhamente, é completamente desconhecido aqui. Ninguém chama burqa à burqa. Chamam-lhe "tchadarí" e ninguém sabe de onde é que os occidentais tiraram a ideia de chamar àquilo burqa.
Ninguém sabe também porque é que os estrangeiros chamam a mesquita de Mazar "blue mosque". Aquilo nao é azul e os Afegaos chamam-lhe "holy shrine" (traducao de Mazar-e-Sharif).
Tempo
Mazar tem uma pequena cadeia de montanhas a Sul, mas sentido Norte está tudo aberto. Para Norte está o Uzbequistao e a Sibéria. Nao sei porque é que esta situacao geográfica nos traz tanto calor, mas percebo que nos traga um frio que uma pessoa até estala em meros fins de Outubro.
No escritório, nao há aquecimento. Hoje trouxe uma mantinha de casa para me aquecer o pernil.
Tenho frio.
Casar
Uma mulher no Afeganistao tem uma existencia funcional. Nao quer dizer que nao pense ou que nao sinta por si mesma, mas a base pela qual todas se definem primeiro é a sua posicao em relacao a outros: filha, noiva, esposa, mae, sogra, avó.
Naturalmente, casar é um enorme passo. E o que realmente marca a passagem à vida adulta, o momento em que se passa da passividade à iniciativa: diz-se que sim ao futuro marido, faz-se um bébé, decide-se o que comer para o jantar…
A melhor ilustracao desta passagem é o ritual de noivado. Muitos casamentos sao pre-organizados dentro da família, entre primos. Mas muitos sao também organizados fora da família. E esses sao os mais interessantes. Com universidades mixtas e mulheres a trabalhar em sítios públicos, observar potenciais mulheres/maridos tornou-se mais fácil. Entre os 20 e os 25 anos, a populacao solteira observa-se, como quem rodeia o carro que pensa comprar. Segue-se um protocolo de (nao)comunicacao estrito: raparigas nao discutem com ninguém o interesse noutro rapaz. Os rapazes nao comunicam directamente com a rapariga que tem em olho. Falam discretamente com um amigo que é irmao de uma amiga da rapariga, e a amiga da rapariga diz à rapariga “olha aquele está interessado em ti”. A rapariga diz, invariavelmente, “nao nao quem decide é o meu pai”. E ambas mudam de conversa – missao cumprida, a mensagem passou. Se uma ocasiao se apresenta, o rapaz traz a mae e o pai a um sítio onde possam observar a dita rapariga – o casamento de um vizinho, a entrega dos diplomas na faculdade… Se o estilo e a graca agradarem, os pais do rapaz concordam em pedir a mao da rapariga ao pai dela. Fazem uma visita a casa da rapariga e pedem par ver o pai. Discutem a proposta, fixam o preco (uma mulher compra-se), e vao-se embora. A este ponto, há pais que decidem sem consultar a filha. Mas o mais frequente, aqui no Norte, é o pai fazer também de mensageiro e perguntar à filha o que é que ela quer fazer. Nesse caso, a filha pode dizer que sim ou que nao. Mas ó o pai é que pode dar a resposta à família do rapaz. Quando a resposta é dada, celebra-se o noivado, e só entao é que o futuro casal pode comunicar directamente. A rapariga passou de filha a noiva.
Mesmo com as recentes mudancas na sociedade, jovens mulheres em sítios públicos, a possibilidade de se observar mutuamente… As mulheres nao se casam por amor. O amor é uma coincidencia. O espectro de escolha que tem é sempre restrito, porque só os rapazes é que podem tomar a iniciativa. Se acaso o jovem de quem elas gostam tanto lhes aparecer em casa com a família, é dia de festa. Festa mental, claro – a rapariga nunca exprime felicidade pelo casamento, isso seria faltar ao respeito à sua própria família. Tirando esses casos de sorte, as mulheres casam-se balancando pros e contras. Nao buscam o ideal, buscam o melhor possível.
No dia em que finalmente decidem dizer ao pai que diga que sim a um pretendente, passam de meninas a adultas, mas esse é também o dia em que se alienam de vez. Dizer que sim a um é dizer que nao a todos os outros. Com o noivado, fechou-se a porta da possibilidade. Possiblidade de outra vida com outra pessoa, com uma outra família, num outro sítio, possibilidade que os pais daquele de quem se gosta aparecam um dia à porta de casa.
A minha colega F. está exactemente neste ponto. Um amor secreto e impossível por um rapaz, cuja mae insiste peremptoriamente em acasalar a uma prima. Pelos compexos canais de comunicacao, a F sabe que ele também gosta dela, mas que nao há meio de convencer a mae. Há anos que a situacao está em águas de bacalhau. A F já disse ao pai para dizer que nao a mais de 10 pretendentes. Mas hà umas semanas, o pretendente foi um colega de faculdade que ela conhece bem, de quem é amiga, um rapaz de horizontes abertos que nunca a vai proibir de trabalhar, com uma família pequena e simpatica e até um palmito de cara.
A F esteve presa na dúvida entre o ideal impossível e o melhor possível durante semanas: nao posso esperar por ele para sempre… Se nunca tivesse sentido isto por ninguém, se nao soubesse o que é sentir isto, seria mais fácil decidir.
A F noivou-se oficialmente com o colega de faculdade há dois dias. Hoje perguntou-me: “love will come, right?” (o amor virá, nao?)
Jovens mulheres
As minhas colegas de trabalho sao jovens mulheres mais ou menos da minha idade. Todas elas viveram vários períodos de guerra e todas elas perderam 5 anos de vida entre 1996 e 2001, enquanto os Talibas estiveram no poder. Nao puderam ir à escola, nao puderam trabalhar, nao puderam sequer sair de casa. Estas jovens mulheres praticamente nao viveram entre os 15 e os 20 anos.
A F. vem de uma família de etnia Tadjique e tem 9 irmaos e irmas. Durante os Talibas, o pai dela decidiu mudar a família toda para a regiao de origem da família: o Badakhshan. Badakhshan é a provincia que fica no extremo Nordeste do Afeganistao, com um corredor fininho que se estende até à infima fronteira com a China. E uma provincia de montanhas e de neves eternas, com sítios tao remotos que nunca viram presenca humana e que os Talibas nunca conseguiram controlar. E uma província com uma populacao recolhida, forte, habituada ao sacrifício, que produziu no entanto uma legiao de poetas e escritores famosos no Afeganistao. A F. escapou aos Talibas passando 5 anos no extremo isolamento da sua província Natal, com aulas improvizadas em casa dadas pelo pai. Assim que os Talibas cairam, F e a sua família voltaram para Mazar-e-Sharif. Hoje a F é Administradora do meu escriorio e professora de Ingles na faculdade. Tem 25 anos.
A FA é também Tadjique. Durante o período dos Talibas, a FA ficou em Mazar, no extremo isolamento dos quatros muros da casa familiar. Com coragem organizou sessoes de costura em casa, onde vizinhas ainda mais corajosas se aventuravam para nao darem em loucas sempre em casa e para ganharem um dinheirito com o que fosse que conseguissem bordar e que os homens da casa conseguissem vender. Para fazerem os poucos metros de suas casas para a casa da FA tinham de arranjar um homem para as acompanhar porque mulheres nao podiam andar na rua sozinhas. Tinham também que ser discretas à entrada, porque iniciativas colectivas com qualquer cariz educativo ou laboral que fosse eram também proibídas para as mulheres. Hoje a FA tem 27 anos e é a advogada da minha ONG. Nao tem a mente mais rápida do mundo, mas tem os tomates que faltam a muitas mulheres mais inteligentes. Fala muito, de maneira confiante e vai para o tribunal sem medo defender o caso de mulheres "impuras" que fugiram de casa porque os maridos lhes batiam diariamente ou porque os pais as queriam casar à forca.
A R é de etnia Hazara. Os Hazaras sao Shiitas, com um facies muito asiático e uma reputacao de efeciencia e esperteza. Sao também um etnia tradicionalmente perseguida e discriminda no Afeganistao e, por essa razao, estao associados a trabalhos duros e subservientes (recolha de lixo, limpeza das ruas, criados). Os Talibas adoptaram uma política próxima da limpeza étnica em relacao aos Hazaras e muitos deles foram massacrados. Pouco antes dos Talibas chegarem ao poder, a R e a sua família fugiram para o Irao. Lá ficou anos e anos, casou-se aos 18 com um homem mais velho, teve um filho e uma filha. Acabou a escola, mas depois nao estudou mais. Com a partida dos Talibas, R, o marido, os filhos e cunhado, a cunhada e a sogra decidiram voltar ao Afeganistao e estabeleceram-se em Mazar, num bairro onde toda a gente se parece com eles – outros Hazaras. A R comecou a trabalhar como "assistente social" na minha ONG, a aconselhar mulheres com problemas de violencia doméstica. A R é profundamente (e honestamente) religiosa, tem uma voz suave, um sentido de justica profundo e aparenta um estado de calma constante. Distinguiu-se de tal forma que passou a ser a chefe da safe house (a casa gerida pela minha ONG, onde mulheres podem ficar em caso de emergencia). Das 5h às 8h da noite, a R vai para a faculdade estudar direito e ciencia política. A faculdade é longe de casa e a R tem sempre dificuldade em arranjar um taxi que a leve a casa. De vez em quando diz em tom de gozo uma piada que nao passa na cabeca de nenhuma mulher dizer: que vai tirar a carta e comprar, nao um carro, mas um Saranj (uma motinha de caixa aberta) para poder vir para casa à vontade. Na ONG, a R. superviza tres assistentes sociais mais velhas que ela e é responsável por uma média de 12 mulheres em estado de depressao intensa, algumas em real risco de suicídio. As assistentes sociais nem sempre reconhecem a autoridade da R. Chegam atrasadas ao trabalho, recusam-se a trabalhar horas extra. E a R desdobra-se em quatro para estar em todo o lado. A R tem as notas mais altas do ano dela e é a única no escritório que percebe a diferenca entre violacao e adultério. Estou neste momento a convence-la a nao se despedir. Tem 27 anos.
A N., é de étnia Tadjique e tem um pai exageradamente controlador. Durante os Talibas, a N nao saiu de casa. Teve a ocasional aula, para nao perder a capacidade de ler e escrever, mas nada mais. Foi um período completamente perdido. Quando os Talibas caíram a N. Tinha 16 anos. Insistiu em voltar à escola e estudar na faculdade. O pai lá deixou, ciente que sem educacao nao se é ninguém. Hoje a N. tem um diploma de Ingles, trabalha como intérprete na minha ONG e, tal como a F., dá aulas na faculdade. Depois do trabalho, a N. tem que ir sempre directa para casa, para limpar a casa e cozinhar para 12 pessoas. O pai só a deixa estar fora de casa o tempo estritamente necessário para o trabalho. Durante o Eid, a N. foi a única que nao fez a corrida das casas dos colegas connsoco, porque o pai nao a deixou sair de casa. A N. é a que tem a mente mais aberta e a maior capacidade intelectual aqui no grupo de colegas. Nao tem pressa em casar, embora seja a única maneira de sair de casa, porque pode ser pior a emenda que o soneto se o marido for um idiota. Por isso vai com calma. Ofereceram-lhe uma bolsa de estudo para um Master na Turquia, mas o pai nao a deixou ir. A N. aceitou porque nao respeitar o pai nao é uma libertacao, é perder os parametros com viveu a vida toda e perder-se um pouco a si mesmo também, e porque a verdade é que a ideia de ir para outro país assim de repente a aterroriza. Mais tarde talvez. Vai com calma. Quando fala dos problemas do Afeganistao, a N. insiste escrupulosamente em desdobrar o caleidoscópio do ser e do parecer: uma mulher que foge de casa é uma mulher desesperada, mas a sociedade (incluindo algumas das colegas aqui do escritório) ve-a como uma pecadora e o pecado é visto como um crime no Afeganistao, mesmo que nao esteja na lei, por isso poem-na na prisao, percebes Filipa-jan? Ninguém mais neste escritório tem a capacidade de formular uma análise assim. A N. nunca saiu de Mazar-e-Sharif. No outro dia estava no carro que me levou a casa. A minha casa fica no extremo Este da cidade e eu ia falando do quao gosto do meu bairro. Quando lá chegámos, a N. disse: obrigada, nunca tinha vindo até tao longe em Mazar. Tem 23 anos.
Eid mubarak
Voltei mesmo no fim do Ramadao para o Eid. Há dois Eids no Islao: Eid-el-Fitr, que marca o fim do Ramadao, e Eid-el-Adha que marca uma história comum às tres religioes monoteístas: o quase sacrifício de Isaaq (ou Ishmael) por Abraao (ou Ibrahim). O Eid-el-Fitr sao tres dias em que se festeja com família e amigos, veste-se roupa nova e come-se comidas especiais. E um pouco como o Natal para nós.
A realidade, no entanto é um pouco diferente. Basicamente o Eid é uma maratona de visitas, nozes e chá. Batemos à porta do amigo ou familiar, dizemos Eid Mubarak, entramos, somos rapidamente encaminhados para a sala de convidados que existe em toda casa Afega, sentamo-nos à frente de uma exposicao de bolos, rebucados, nozes variadas, servem-nos chá e bebemos e comemos durante 10-15 minutos. Depois levantamo-nos dizemos obrigada, adeus e vamos embora. O estranho é que, para além do olá e adeus, ninguém diz nada. Nao se conversa. Nao se ve sequer o resto da casa e dos residentes da casa.
Fiz isto seis vezes na Sexta-feira passada. Ao fim do dia a minha colega pergunta-me se também temos esta tradicao de visitar pessoas numa ocasiao especial, no meu país. Eu disse que nao, e é verdade que nao. E ao dize-lo pensei, bolas, até parece que somos mesmo individualistas na Europa. Mas pera aí, alto lá e pára o baile... Nao temos maratonas de visitas, mas há mais conversa e diálogo numa noite de Natal em Portugal do que em tres dias de Eid aqui.
E a diferenca entre quantidade e qualidade.
Vida
Todas as manhas atravesso a cidade na carrinha Toyota Hiace da ONG para ir para o escritório. Durante a viagem, ainda penso muitas vezes será que alguém se vai pulverizar ali à frente (curiosamente penso "ali à frente" e nao "aqui à frente"), mas estou a comecar a ver Kabul como um sítio de vida. O antigo teatro ainda tem um frontao majestuoso, e entre os pilares do primeiro a estrutura de uma escadaria enorme ainda lá está a caracolar para o segundo andar, onde também já nao há paredes. E no res do chao está uma loja de materiais de casa de banho, de todas as cores e feitios, com vitrines bem cuidadas, que o empregado abre orgulhosamente para a clientela. Porque a vida continua e neste momento quem tem dinheiro quer reconstruir a sua casa. Pensar em ir ao teatro nao é para já.
Mais à frente estao uma série de "estabelecimentos educativos" com placards coloridos a anunciar "English language and computer classes". Chamam-se "Centre for modern languages and computer science" ou "Institute for English and computer training - streamlining, headstart, small group classes". A primeira vista é estranho ver ensino de língua estrangeira sempre associado a informática, mas pensando melhor até faz sentido: sao duas coisas estrangeiras de qualquer maneira sao esses dois conhecimentos quem abrem as portas a um salário bom, neste momento.
Ao passar ao longo do rio de Kabul (que agora está seco) vejo a entrada da universidade no meio do mercado, para onde entram grupos de raparigas de véu na cabeca, cobrindo o nariz e a boca com a ponta caída. Seja como for, o véu nao é uma burqa; estas raparigas conseguem ver a rua e as pessoas como deve ser.
No meio do transito há dezenas de jovens de bicicleta a pedalar desalmadamente, impondo-se corajosamente a jipes, carrinhas e camioes, com uma máscara cirurgica verde na cara - porque a poluicao em Kabul é intensa e mais vale prevenir que remediar, num sítio onde os hospitais pouco tem, e porque estes jovens nao querem morrer aos 45 anos.
Afinal, já nao estou a ver o mundo tao negro quando estou em Kabul. E ainda menos hoje, que marca uma data tao querida: há dois anos eu, ele e o camiao da Europcar comecámos uma vida a dois.
O miúdo dos pneus
Na apatia geral que caracteriza Mazar (estao 40 graus à sombra às sete da manha, minha gente), é o miúdo dos pneus que me acorda e me arranca o primeiro sorriso do dia.
Mulheres
Um marido tranca a mulher num quarto e nao lhe dá de comer durante semanas, a tal ponto que quando familiares a encontram cadavérica e a trazem para onde há ajuda, ela está tao fraca que morre.
Uma mulher foge de casa com os bracos e pernas cobertas de nódoas negras e feridas internas causadas por repetidas violacoes pelo cunhado. E encontrada pelos irmaos e assassinada em nome da honra da família.
Uma rapariga de 13 anos, de desespero ao saber o seu casamento com um homem de 60 anos aproximar-se, pega num fósforo e em gasolina e poe-se em chamas.
Uma mulher espancada pela sogra e pelas cunhadas que foge sem sítio para onde ir, refugia-se na mesquita e à noite é levada para a prisao onde fica sem saber porque e sem ninguém saber.
Comecei finalmente a trabalhar com a CCA, uma ONG Afega que gere um abrigo para vítimas de violencia doméstica, para evitar que casos destes atinjam consequencias irreversíveis. As mulheres que conseguem chegar a nós podem ficar em seguranca numa casa cuja localizacao só uma dúzia de pessoas conhecem. Podem ter acesso a uma médica, a uma assistente social e a uma advogada. Podem ficar o tempo que for preciso até a crise passar ou encontrar-se uma alternativa de vida.
Surpreendentemente, à excepcao de casos de violacao e de casos de pessoas de étnia Pashtoon (mais conservadora de todas), ao fim de alguns meses de mediacao com a família, as coisas assentam e as mulheres voltam para casa em seguranca, os casamentos forcados sao anulados, novos casamentos sao selados... Mas para lá dos bons desfechos, fica-me sempre uma sensacao de incredulidade. Incredulidade nao com a condicao feminina no Afeganistao; nao com a violacao sistematica dos direitos das mulheres. Incredulidade com o lado (des)humano da coisa. Com a ideia que um irmao prefira, à partida, ver a irma morta do que aceitá-la de volta após ela ter fugido e desobedecido. Que um marido simplesmente nao alimente a mulher e seja capaz de a ver emagrecer dia-a-dia até desfalecer. Que um pai nao aceite uma filha de volta depois de um divórcio oficializado por causa de maus tratos pelo marido escolhido por ele. Custa-me perceber que a imagem e honra da família se sobreponha a quaisquer sentimento de compaixao entre um humano e outro humano - ainda para mais quando há lacos de sangue; que a dinamica social e familiar no Afeganistao seja tao diferente da minha que seja normal um pai nao querer saber de uma filha que foi violada.

O Campo
No Campo há tres vezes mais kilometros de estrada alcatroada do que em Mazar-e-Sharif e arredores. Há duas lojas com mercadoria tax free, um balcao dos correios e uma pizzaria. A pizzaria é um autentico quebra-cabeca juridico: local administrado por uma entidade sub-contratada privada, situado na parte Norueguesa do campo Alemao das forcas da NATO no Afeganistao. Se eu matar alguem ali, como é que é?
Para cada soldado de combate há tres soldados de apoio - soldados "administrativos" que passam 4 meses no Afeganistao a auto-administrarem-se, sem nunca sairem do campo, dadas as limitacoes de mandato impostas pelos Parlamentos de origem - que querem "estabilizar" o Afeganistao, mas sem por os boys em risco. Coitados, lá se vao mantendo ocupados a correr dentro do perimetro do campo, ao balcao do servico de correio, a limpar armamento e tanques que tambem nao vao a lado nenhum. E um sítio estranhissimo.
Solucao ao enigma
Oh Sr. Mohamed arrange-me aí um camelito de palhita bem colhidita fáxavore
Sao tres camelos de palha para embrulhar se faz favor
Palha... faca aí dois camelos e meio bem carregatidos
A quanto é que tá o camelo de palha Sr. Mohamed?
Sim, a medida para palha é o camelo.
Ninguém ganhou o prémio. É pena que as musiquinhas do senhor dos gelados sao bem catitas.
Retomando a tradicao dos concursos...
No outro dia recebi uma:
Primeira página, título: "construcao de 5km de estrada na povoacao x"
Segunda página, descricao do projecto: "na estacao seca apareceram muitos gafanhotos, que destruiram as plantacoes. Com este projecto, planeamos financiar uma campanha de eradicao manual dos gafanhotos, com o involvimento da comunidade"
Terceira página, orcamento: "preco para a construcao de um poco de água de dimensoes x/y/z"
Gostava de entrar na cabeca da pessoa que escreveu isto - qual será a lógica por trás de tao esquizofrenica proposta?
A parte dos orcamentos é especialmente imaginativa. Aparecem custos para "tapete de entrada", "espelho", "chinelos para convidados" (no Afeganistao nao se entra em lado nenhum com sapatos de rua).
Ah.... E adivinhem qual é a unidade de medida usada para a compra de palha?
Quem acertar ganha uma gravacao live da música dos carrinhos de vendedores de gelados de Mazar.
Outra proposta
A vida para além do Hindu Kush
A 15 Km da fronteira do Uzbequistao, na confluencia de duas estradas, passa aqui tudo: gente, animais, comida, droga... Foi a cidade mais oriental onde o Alex o Grande se instalou e onde foi enterrado, Ali bin Talib (coitado, mal sabia ele a ressonancia do nome que lhe deram), o primo do Profeta e 4 califa do Islao. Ou seja, tem história e tem movimento, modernidade.
Prova disso é o ex-libris da cidade: a mesquita azul de Hazrat Ali (do dito primo). De dia é um edifício lindo, imponente que cheira a grandezas passadas:

Mas à noite, toda ela pisca que nem uma louca, de azul, de vermelho, de amarelo, com uma daquelas palmeiras falsas chinesas à frente, que, nao sei porque tem grande saída mundo fora, igualmente iluminada que é para ficar mai-lindo:
Há 6/7 estradas asfaltadas em Mazar - o que nao se pode dizer de Kabul... O engenheiro que as fez deve ter feito formacao em Torres Vedras, porque cada 20 m de estrada está a obrigatória rotunda, quer haja cruzamento para outras estradas quer nao, com a estatua da praxe e - detalhe local - posters super size do Massoud e do Karzai. Quando há cruzamento para outros lados, há placas de indicacao rodoviária do mesmo azul usado para as auto-estradas a Europa.
Seria um cenário normal para os nossos standards, nao fosse o facto de se poder entrar em rotundas a contra-mao e do sentido de prioridade ter a ver com o tamanho do veículo.
O nosso é grande.
Seguranca em Kabul
As ruas de Kabul sao um chaos de transito. A cada esquina há um grupo de jipes da polícia e agentes armados a pé. Aqui e ali há também uma casota com uma abertura por onde se veem pontas de canos de metrelhadoras apontadas para a rua, e se adivinha o olho atento do agente. As vezes a polícia restringe o acesso a certas ruas por razoes de seguranca nunca claramente explicadas - carros oficiais ou de organizacoes podem entrar; carros privados vao dar a volta ao bilhar grande. Outras o acesso é restrito porque um enorme rebanho de cabras enfiou por ali e os dois pastores nao há meio de controlarem os bichos.
Kabul tem vários restaurantes mais ou menos "reservados" para estrangeiros. Sao sitios bonitos, com comida boa, staff super bem treinado, onde se pode estar à vontade de cabelo descoberto e onde se pode até beber alcool. Só que para se entrar, passa-se por vários guardas armados de metrelhadoras, um detector de metais, uma busca corporal e uma busca de sacos e malas. E tenta-se descansar o guarda que se vai desfazendo em desculpas pelo incómodo - mas "it's my job".
Kabul
Sobrevoar o Afeganistao é bastante impressionante. Veem-se cadeias montanhosas bem desenhadas, com vales, um rio meio seco aqui e ali e nada, nenhum sinal de vida. Lembro-me que ao sobrevoar o Sudao via deserto a perder de vista, mas havia trilhos de animais ou pessoas, ate a sombra de uma ou outra arvore que por la sobrevivesse. Aqui nao há nada, é uma paisagem lunar, meia acastanhada (branca no Inverno).
Kabul fica num vale rodeado de montanhas. O centro é no meio do vale e o casario vai-se expandindo encostas acima, tudo cor de terra. E dificil respirar aqui. Indo-se encosta acima, esvai-se o oxigenio a cada metro, dado que o vale esta jà a 1800 m de altitude. Ficando-se no vale, esvai-se o oxigenio, diluído no fumo de escape dos carros.
O transito e caotico. Alguns carros tem volantes do lado esquerdo, outros do lado direito e nao sei dizer de que lado e que se guia oficialmente. Basicamente, é tudo ao molho, mao na buzina e fé em Alá.
Nao se veem muitas mulheres na rua, mas das poucas que se veem nem todas usam burqa. Os homens vestem-se da maneira tradicional: calcas, tunica comprida e colete por cima da tunica. Na cabeca ou um chapeu à la Karzai ou um chapeu à la Massoud ou um lenco enrolado em turbante à la Bin Laden.



Futebol e o mundo
Um deles disse que estava tão triste porque Portugal foi eliminado, porque toda a gente gosta tanto de Portugal!...
Ou será porque foi a Alemanha (que tem as tropas todas em Mazar) que o eliminou?
Seja como for, é bom para mim. Já perdi a conta das vezes em que o futebol me ajudou a quebrar o gelo em países longíncuos e vagamente inquietantes.
Entrevista fotográfica
Ontem fizemos a experiência, H entrevistando F:
Viveste em Nova Iorque há uns meses, o que achaste?
Mas a tua cidade preferida sempre foi Paris, ainda é?
Uma noite com o George Clooney?...
Ok... e como é que olharias para ele?
Mudando de assunto, vais para o Afeganistão em breve; se tivesses que usar uma burqa usavas?
Estás a pensar trabalhar para o Ziviler Friedensdienst (Serviço Civil de Paz), acreditas que se possa resolver conflitos pelo diálogo?
Vais trabalhar com mulheres, o que achas da Angela Merkel?
TV Morrinho
Cristiane
Por sair à noite entenda-se, não o jantar fora, nem o cinema às 8 da noite, nem as ocasionais jolas no bar da esquina de ténis e T-shirt ranhosa até à meia-noite - não vá a bina transformar-se em abóbora.
Por sair à noite entenda-se brilhantes na pele, rimmel, khôl, gloss, sapatinho da moda e calça de cintura descaída. Entenda-se tomar-se café às 11h da noite, seguir-se para os copos para aquecer num bar e só por volta das 2h da manhã pensar-se, eh pá isto se calhar já se ia para a disco. Entenda-se fazer-se fila para entrar, levar-se com um carimbo no pulso, ser-se empurrado e tocado por gente desconhecida - por favor diz-me que este alpalpão foste tu, marido... - no meio de um caos de decibéis e luzes que se não nos fazem explodir o cérebro, fazem-nos cambalear de tontura e atacar com confiança a selva que é o bar e batalhar para ganhar a atenção da/do barmaid/man - zwei vodka-tonic bitte. Entenda-se deshidratação extrema derivada das quantidades de alcool consumidas, o sol a nascer, a batata frita ou o kebab consumidos à ida para casa sem qualquer razão fisiológica, o vizinho a passear o cão na rua para a primeira urina do dia, o cair-se na cama exausto e o acordar ainda levemente ébrio a pensar: água, guronsan, café.
Ontem à noite, provando que lá por sermos casados não quer dizer que sejamos lólózinhos, o H e eu atacámos o Weekend Club, no 12 e 15 andar do prédio da Sharp em frente à torre da TV, na Alexander Platz. Fomos inspirados pelo anúncio de uma dupla de DJs Brazileira e foi um abuso de energia e de riso, ao ritmo de hip-hop Brazuca saído directamente das festa na favela da Cidade de Deus (meu nome é Zé Pequeno):
Vem critiane... Vem cristiane... Vem cristiane...
Fica comigo assim descontrolada
Ai eu puxo o teu cabelo
e você diz pra mim não para
Me puxa, me agarre, faz o que quizer,
Me morde, me arranhe você é minha mulher...
A mãe do H chama-se Christiane.

Regressão

A questão é: qual o melhor estilo
9 de Maio já lá vai!
Sobrevivi tort law, contract law e constitutional law - que, num país sem constituição escrita, é de uma pessoa se deitar para o chão a rir. Resolvi 9 casos, com um total de 44 partes a quem aconteceu o diabo a quatro: um ginásio comprado com base em informação fraudulenta, uma cantora de ópera que insistia em incomdar os vizinhos à noite, uma senhora que prometeu vender um fato a outra senhora e entretanto o vendeu a uma terceira senhora, um Afegão detido e interrogado violentamente numa base militar Inglesa...
E por falar em Afeganistão: estamos de partida para lá no fim de Junho. A vida continua!
O que me aconteceu?

Mais uma razão para gostar do direito Inglês:
Não sou portanto a única.
Penitência
A crise, percebi, já fermenta há vários meses e é, sem dúvida, inaceitável que não tenha acompanhado a coisa desde o início. Mas o mundo é grande, há muitos problemas e estou longe, de maneira que a actualidade Portuguesa não é sempre uma prioridade. Mereço, sem dúvida, uma severa penitência.
A minha penitência acabou por ser, imagine-se, a tentativa de perceber a questão. O Público falou dos milhares esperados em Lisboa, das visitas da PSP às escolas para investigar identidades de potenciais manifestantes, e da oposição às reformas da Ministra. Mas que reformas?
No website da FENPROF li indignação em relação às visitas da PSP às escolas e revolta em relação às reformas da Ministra. Mas que reformas?
Fui então ao website do Bloco de Esquerda. Aí li uma condenação das visitas da PSP às escolas e uma censura das reformas da Ministra. Mas que reformas, caramba!?
Pensei bom vou tentar ver o telejornal da RTP. Faço o download do video do Jornal da Noite de 6a feira. Depois da trágica história da pequena Mari Luz, veio finalmente a reportagem sobre a tão esperada maior manif de professores da história e o que vi deu-me vontade de chorar:
1o: as dificuldades de estacionamento em Lisboa, durante a manif, ilustradas pelo repórter no seu carro - "amanhã vai ser difícil estacionar aqui".
2o: o curso exacto da manif, com mapa interactivo e tudo... a que minuto saiem do Terreiro do Paço, que vai à frente, que vai atràs etc.
3o: as preparações de viagem de uma professora do Minho: dois chouriços, três carcaças, um pão caseiro e um pão da avó pede ela, se faz favor, à padeira da estação de serviço.
E pronto.
Sei que é fácil criticar quando se está longe e, desde sempre, tentei resistir à tentação de achar que Portugal é um país provinciano e que o estrangeiro é que é bom. Mas nestas circunstàncias é difícil não sentir alívio por ter saído do país e visto outras coisas pelo mundo fora. E difícil não me sentir deprimida ao pensar na atmosfera em que vivem os Portugueses. E difícil não achar que Portugal está em estagnação intelectual. Estou deprimida por causa dos factos e estou deprimida por ter esta opinião.
Agradeço a quem me explique, objectivamente, porque é que os professores estão revoltados. E entretanto, para manter uma mente sã, vou relembrando o Gato Fedorento:
Sudão em Berlim
Emmanuel Jal fugiu do Sul do Sudão para um campo de refugiados na Etiopia, algures nos anos 80. O exército de libertação do sul do Sudão andava a recrutar soldados no campo e Emmanuel Jal, porta-voz das crianças do campo já carismático aos 8 ou 9 anos, filmado por conicidência por um jornalista que por là andava, tornou-se criança-soldado. Treinaram-no e deram-lhe uma AK47 maior e mais pesada que ele e mandaram-no de volta para o Sudão para lutar contra as forças de Cartum, juntamente com outras crianças. Ao fim de algum tempo o grupo de crianças-soldados decidiu fugir e caminhou durante meses pelo Sudão, resistindo à tentação de comer camaradas mortos de cansaço e fome e comendo, ao invés, abutres que se aproximavam, sentindo o cheiro de carne humana (quase) morta. O grupo de "lost boys" foi encontrado por Emma McCune, uma humanitária tornada segunda mulher de comandante rebelde, Riek Machar - hoje vice-presidente do Sul Sudão. Emma escolheu Emmanuel, num gesto de selectividade que hoje em dia não seria possível de todo (se cada humanitário fizesse o mesmo...), e levou-o clandestinamente para Nairobi, num vôo das Nações Unidas. Emmanuel viveu com Emma e Riek Machar até à morte de Emma num acidente de carro suspeito, após o qual foi posto na rua pelo não tão generoso Riek. Graças a redes de apoio nos bairros de lata de Nairobi, Emmanuel foi escolarizado e é hoje um famoso cantor de hip-hop, que dá a volta ao mundo com uma mensagem de paz em Inglês, em Nuer e em Arabe. Há quem diga que para saber o que será o Darfur daqui a 30 anos, basta olhar para o Sul do Sudão.
War Child, o filme sobre a vida de Emmanuel, foi apresentado na Berlinale aqui em Berlim e nós fomos ver.
E sim, tenho saudades do Sudão.
O nosso dia dos namorados

Ontem, como era dia dos namorados, fomos jantar ali ao Amuse Gueule.
Nisto entra um senhor com um leitor de cassettes e um clarinete e pergunta à empregada, em Alemao, se pode tocar uma musiquinha para alegrar a malta. Carrega no play e sai uma especie de ruído de hard rock Alemao que nao lembra ao menino jesus impôr a ninguém, mas que, terao quissá dito ao senhor, que era o que tava a dar na Alemanha. O senhor continua, nao obstante, a performance, tocando umas notitas no clarinete por cima da cassette. Tudo a olhar... oh meu deus quem é este personagem? E, quando nada mais poderia piorar o espectaculo, dá um ataque de constipacao ao senhor e, entre cada sopradela no clarinete, sai um tossicar fazendo, portanto, com que se oica o rolar da expecturacao em fundo de hard rock Alemao e nao mais o clarinete que era a unica coisa que salvava a situacao. Aí foi mesmo demais, e a empregada diz-lhe para ele parar, que era suposto ser só uma música. Vai ele e implora outra oportunidade, desta vez sem a cassette, que sem a cassette conta como uma música. Ela - neiiineuh neiiineuh. Ele reconhecendo que ela é Francesa: une chanson, une chanson. One song, one song. Nao fosse o Francês dela estar enferrujado. E, sem mais ouvir, desata a cantar em Romeno, tentando ao mesmo tempo dar umas notas no clarinete para acompanhar. Ao fim de algum tempo, conclui que nao dá para multitascar com voz e clarinete e ainda por cima, com a tosse a ameacar, é complicado. E nisto pára e desata a falar encavacado, em Romeno, que é um bocado difícil aquela tarefa. Pelo menos é o que suspeito eu, dado que nao sei Romeno e que se calhar aquilo era Búlgaro.
Foi uma verdadeira perdicao em translacao.