Uma mulher no Afeganistao tem uma existencia funcional. Nao quer dizer que nao pense ou que nao sinta por si mesma, mas a base pela qual todas se definem primeiro é a sua posicao em relacao a outros: filha, noiva, esposa, mae, sogra, avó.
Naturalmente, casar é um enorme passo. E o que realmente marca a passagem à vida adulta, o momento em que se passa da passividade à iniciativa: diz-se que sim ao futuro marido, faz-se um bébé, decide-se o que comer para o jantar…
A melhor ilustracao desta passagem é o ritual de noivado. Muitos casamentos sao pre-organizados dentro da família, entre primos. Mas muitos sao também organizados fora da família. E esses sao os mais interessantes. Com universidades mixtas e mulheres a trabalhar em sítios públicos, observar potenciais mulheres/maridos tornou-se mais fácil. Entre os 20 e os 25 anos, a populacao solteira observa-se, como quem rodeia o carro que pensa comprar. Segue-se um protocolo de (nao)comunicacao estrito: raparigas nao discutem com ninguém o interesse noutro rapaz. Os rapazes nao comunicam directamente com a rapariga que tem em olho. Falam discretamente com um amigo que é irmao de uma amiga da rapariga, e a amiga da rapariga diz à rapariga “olha aquele está interessado em ti”. A rapariga diz, invariavelmente, “nao nao quem decide é o meu pai”. E ambas mudam de conversa – missao cumprida, a mensagem passou. Se uma ocasiao se apresenta, o rapaz traz a mae e o pai a um sítio onde possam observar a dita rapariga – o casamento de um vizinho, a entrega dos diplomas na faculdade… Se o estilo e a graca agradarem, os pais do rapaz concordam em pedir a mao da rapariga ao pai dela. Fazem uma visita a casa da rapariga e pedem par ver o pai. Discutem a proposta, fixam o preco (uma mulher compra-se), e vao-se embora. A este ponto, há pais que decidem sem consultar a filha. Mas o mais frequente, aqui no Norte, é o pai fazer também de mensageiro e perguntar à filha o que é que ela quer fazer. Nesse caso, a filha pode dizer que sim ou que nao. Mas ó o pai é que pode dar a resposta à família do rapaz. Quando a resposta é dada, celebra-se o noivado, e só entao é que o futuro casal pode comunicar directamente. A rapariga passou de filha a noiva.
Mesmo com as recentes mudancas na sociedade, jovens mulheres em sítios públicos, a possibilidade de se observar mutuamente… As mulheres nao se casam por amor. O amor é uma coincidencia. O espectro de escolha que tem é sempre restrito, porque só os rapazes é que podem tomar a iniciativa. Se acaso o jovem de quem elas gostam tanto lhes aparecer em casa com a família, é dia de festa. Festa mental, claro – a rapariga nunca exprime felicidade pelo casamento, isso seria faltar ao respeito à sua própria família. Tirando esses casos de sorte, as mulheres casam-se balancando pros e contras. Nao buscam o ideal, buscam o melhor possível.
No dia em que finalmente decidem dizer ao pai que diga que sim a um pretendente, passam de meninas a adultas, mas esse é também o dia em que se alienam de vez. Dizer que sim a um é dizer que nao a todos os outros. Com o noivado, fechou-se a porta da possibilidade. Possiblidade de outra vida com outra pessoa, com uma outra família, num outro sítio, possibilidade que os pais daquele de quem se gosta aparecam um dia à porta de casa.
A minha colega F. está exactemente neste ponto. Um amor secreto e impossível por um rapaz, cuja mae insiste peremptoriamente em acasalar a uma prima. Pelos compexos canais de comunicacao, a F sabe que ele também gosta dela, mas que nao há meio de convencer a mae. Há anos que a situacao está em águas de bacalhau. A F já disse ao pai para dizer que nao a mais de 10 pretendentes. Mas hà umas semanas, o pretendente foi um colega de faculdade que ela conhece bem, de quem é amiga, um rapaz de horizontes abertos que nunca a vai proibir de trabalhar, com uma família pequena e simpatica e até um palmito de cara.
A F esteve presa na dúvida entre o ideal impossível e o melhor possível durante semanas: nao posso esperar por ele para sempre… Se nunca tivesse sentido isto por ninguém, se nao soubesse o que é sentir isto, seria mais fácil decidir.
A F noivou-se oficialmente com o colega de faculdade há dois dias. Hoje perguntou-me: “love will come, right?” (o amor virá, nao?)
1 comentário:
Nas últimas semanas multiplicaram-se as notícias de pessoas próximas que, recem-casadas, estariam prestes a divorciar-se ou que, prestes a casar, tinham adiado indefinidamente o propósito. Sei que não se pode tirar qualquer conclusão disto, mas tem graça (funny peculiar) a diferença de contextos.
Enviar um comentário