Goma fica mesmo na fronteira com o Ruanda, e o Ruanda é um país minúsculo, portanto até Kigali sao só 3h de caminho. A fronteira sao dois blocos só de rés-do-chao separados por uma cancela e uma casinhota com um guarda. Do lado Congoles, há que assinalar a partida. Vou com o passaporte até ao guichet e espero enquanto o senhor guarda transcreve à mao com uma Bic Cristal "(escrita normal") os meus dados para um enorme caderno azul, cujas páginas ostentam varias colunas (nom, prénom, date de naissance...) desenhadas à mao e régua. Devolve-me o passaporte e bon voyage. Caminho entao até ao lado Ruandes, passando por um no-man's-land onde cidadaos Congoleses fazem fila para mostrar o bilhete de identidade que lhes faculta simplesmente a entrada no país vizinho. No guichet Ruandes, há que assinalar a entrada. Preencho o formulario com uma caneta Bic Cristal ("escrita normal") que compro a uma senhora muito velhinha e com uma grande corcunda que por ali as anda a vender, empreendedora que é. Dou o formulário e o passaporte ao senhor guarda Ruandes no guichet. Nao há cadernos azuis com linhas feitas à mao aqui. Aqui há leitores de passaporte electrónicos e computadores flat screen onde a senhora guarda (o Ruanda é um país-exemplo da emancipacao feminina) rapidamente me identifica ("welcome back") e me devolve o passaporte.
Karim o chófer do IRC-Congo (a minha ONG-mae) espera-me no seu Toyota Corolla (um modelo tao ubíquo aqui como no Afeganistao, com a diferenca que aqui nao os há carragdos de explosivos). A cidade gémea de Goma do lado Ruandes chama-se Gisenyi e é um autentico resort digno da Cote d'Azur. Jardins à Inglesa, com rosas e buganvilias e relva cortadinha, uma promenade arborizada ao longo do lago - sim o mesmo raio do lago -, até há um Hotel da cadeia Serena (o que traz memórias de Cabul, onde o Serena era um oasis de paz até ao dia em que um comando de suicidas entrou por lá adentro). A beira lago, há uma praiazinha onde se refastelam tanto brancos como pretos, cada um na sua, numa igualdade com só antes tinha observado em Zanzibar e que me faz sentir imediatamente feliz.
Do Congo para o Ruanda, é como mudar de planeta. Fazemo-nos à estrada em direccao a Kigali e a primeira coisa que noto é conforto. A segunda é velocidade. A partir do primeiro milímetro de terra Ruandesa, as ruas acidentadas cheias de blocos de basalto da última erupcao do Nyiragongo que enjordou Goma inteira há uns anos, transformam-se em ruas lisas pavimentadas, daquelas que até apetece ir buscar uns patins ou um skate e andar ali às voltas a tarde inteira. E um país onde máquinas-cilindro cobrem cuidadosamente trocos de estrada menos perfeitos, enquanto uma senhora vestida de um Freequest como deve ser e armada de um radio Motorola controla o transito na faixa comum. Em Goma, um arranjo de rua que testemunhei era: camiao cisterna atrás do qual tinham adicionado um tubo de metal onde fizeram buracos (à metrelhadora?) e onde enfiaram em cada ponta meia garrafa de agua de plástico. Camiao esguicha água pelo tubo enquanto passa por cima da terra batida para a frente e para trás. Cada vez que anda para frente, mete-se metade por cima da rua perpendicular, o que obriga o transito nessa rua a parar. Como tal, para o Karim, as estradas Ruandesas sao como as pistas do Rally do Monaco.
Vruum vruuuum lá vou eu e o Karim cheios de bica no Corolla, a ouvir no rádio roufenho o relato do Ruanda-Eritreia e deparamo-nos (inevitavelmente) com outro contraste: a presenca de polícia de transito que nos obriga a parar na berma e que dá um sermao ao Karim, em tom de Diácono Remédios: 1) "entao vai assim a guiar com tanta velocidade por zonas habitadas, amigo? Nao pode ser..." (e o Karim olha para baixo e murmura um desculpa) 2)"entao anda assim sem cinto de seguranca nem nada? olhe para ela (aponta para mim) tá a ver que ela tem-no posto como deve ser..." (e o Karim lá vagarosamente passa o cinto de seguranca pelo peito e fica a agarra-lo discretamente dentro do encaixe (que nao clica, claro está, partido que está há anos). Avisados lá seguimos - o cinto de seguranca do Karim voou claro está de volta para onde veio.
Outro grande contraste entre o Ruanda e o Congo é que o Ruanda é um país minúsculo e apinhado de gente. Nao há espaco vago, ou se constrói ou se cultiva. Intensamente. E é gente e gente e gente por todo o lado. Uma das razoes pela qual tanto sangue jorrou em 1994. Pela estrada que seguimos de Goma para Kigali, no Verao de 1994, assistia-se, em sentido contrário, a um exodo digno de Seringueti no mes de Dezembro, quando milhares e milhares de Hutus fugiram para o Congo depois de terem metodicamente assassinado quase 1 milhao dos seus compatriotas. Numa ironia macabra que porá para sempre deshonra na bandeira das Nacoes Unidas, os que fugiram para o Congo instalaram-se em campos de refugiados já preparados e cheios de agencias da ONU e de ONGs internacionais, no que foi uma das maiores operacoes humanitárias do século. Isto no rescaldo imediato de 100 dias de genocídio que teriam sido evitados se a ONU tivesse mandado 5,000 capacetes de reforco ao General Dallaire, comandante da UNAMIR, a missao de "paz" no Ruanda, e se o tivesse autorizado a desmantelar redes de armazenamento de armas que se estavam a formar em todo o Ruanda e a abrir fogo para proteger civis. Mas nao, Dallaire recebeu ordem de se limitar estritamente ao seu mandato de observador do "cessar-fogo".



2 comentários:
especialmente tocante, a última foto!
Bjs e boa chegada a NY!
Mab
realmente...não tinha essa ideia do Ruanda... kisses mana e a todos la em casa!
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