De volta - mais uma vez

E sempre um ligeiro périplo voltar ao Afeganistão. Ou porque tenho que dormir uma noite com as soldadas no Uzbequistão, ou porque tenho que dar a volta à península Árabe para cá chegar. Desta vez, foi a segunda situação.

Tudo começa com a partida de Lisboa para o aeroporto, de manhãzinha, recolhendo os post-its que deixo pela casa fora para me relembrar dos últimos items a pôr na mala:
"não esquecer escova de dentes"

"levar porco - frigorífico" (o sacro-santo presunto que me serve para refeições rápidas e me agrava a rentenção de água).

Mesmo com tanta viagem no corpo, a noite antes da partida é sempre de sono leve. Por isso lá vou cheia de olheiras, pelas quais escorrem sempre uma lágrimazitas quando entro pela porta de segurança de saquinho dos líquidos e cinto na mão e deixo para trás a minha mãe pela 50a vez.
Lisboa - Frankfurt.

Em Frankfurt é a odisseia para chegar até ao terminal B das partidas inter-continentais. Ando kilómetros, sem a ajuda motriz da passadeira que está - como sempre - avariada, ultrapassada pelos velhadas que têm direito a transporte no carrinho eléctrico. Jovem sofre de mochila pesada às costas com computador e uma muda de roupa - não vá a mala perder-se.

Passageira exemplar, ouço a chamada para a porta de embarque A61 para Dubai e dirijo-me para lá imediatamente com somente uma Marie Claire, um Courrier International e uma caixa de nozes de macadamia cobertas de chocolate de leite no saco do Duty Free.


Frankfurt sendo um hub para vôos de longo curso, vêem-se famílias a dormir nos bancos, putos exaustos a chorar desalmadamente e cabines de fumo para os fumadores que não aguentam - cubos envridaçados, com posters de publicidade gigantesca à Phillip Morris com o quadrado "Smoking kills" e autocolantes absolutamente hilariantes com um círculo com um boneco a fumar dois cigarros ao mesmo tempo e uma barra vermelha por cima - pelos vistos há quem assambarque a nicotina no sistema fumando dois cigarros em simultâneo... e isso é proibido.

Falta 1h para a partida. Sento-me e leio sobre as mulheres na Guatemala. Depois leio sobre o vôo da Yemenia que caiu. Depois leio sobre o Irão. Está tudo muito quieto à minha volta. Olho para o relógio: falta 10 min para a partida e reparo não está ninguém à minha volta na porta de embarque. Olé - o que é que se passa aqui? Pergunto à senhora da Lufthansa, que me diz que a porta de embarque mudou - não ouviu? não, e também não ouvi nenhuma chamada com o meu nome! Então corra lá para cima, porta A27 pode ser que tenha sorte.


Lá vou eu a arfar escada acima, com a mochila às costas trum trum trum saiam-me da frente! Chego à porta A27 e vejo um maralhal de jovens ocidentais que vão de férias para o Dubai não sei porquê (com tanto país no mundo...), de famílias Dubaianas de óculos de sol Gianni Versace, véu da Chanel na cabeça mas de T-shirt justa e mangas curtinhas, que é uma combinação que nunca percebi.


Afinal não há crise, o vôo está atrasado 2h. Havia um problema técnico no avião e tiveram que mudar tudo para outro avião. Meia descansada, meia amedrontada sento-me à espera. Embarcamos finalmente - seis horas e meia de vôo. A minha frente vai uma família de Afegãos-Alemães. Falam P
ashtu, devem ser do Sul. A mãe a tentar acalmar os 4 filhos. O pai vai para a fila de trás e fecha os olhos a descansar - não é nada com ele. Quando a mulher se vira para trás para mandar vir com ele, ele enxota-a literalmente - qual Obama com a mosca - batendo-lhe de rojo na cara e torna a adormecer. Fúria, indignação, nojo. Que gente esta.

Chegados a Dubai, corro a ultrapassar o máximo de gente possível para chegar à fila da fronteira sem muita espera. No hall da fronteira, felizmente, estão dezenas de guichets abertos, as filas não são grandes. A m
inha volta estão os oficiais de fronteira - verdadeiros "sheiks", altos, altivos, de jellabia branca imaculada, rígida com goma, e véu branco segurado por um aro preto na cabeça. Nas outras filas estão Chineses, Filipinos, Indianos. Filas e filas de homens - vêm para trabalhos temporários, deixam as famílias para trás e mandam-lhes dinheiro ao fim do mês. Não sabem Árabe. Não sabem Inglês. Têm-se uns aos outros somente. Os cidadãos dos Emirados Arabes Unidos recebem uma “mesada” do estado para viver; os “sheikhs” são oficiais ou homens de negócios, ponto. Os outros trabalhos são para outras gentes.

Já escaldada por experiências anteriores e sem paciência para aventuras, pedi ao hotel que mandasse alguém para me buscar ao aeroporto. Lá estava o senhor, diligente, de placa na mão que até se lembra de mim. Saimos para a rua e sinto o absurdo que é aquele país – 42 graus (às 2h da manhã) e uma humidade de 200%. Ninguém aguenta tal clima de maneira natural. Talvez por isso haja ar condicionado até em espaços semi-abertos. Talvez por isso não haja passeios nem ruas no Dubai. Há auto-estradas, porque ninguém anda a pé. Hotel – finalmente posso dormir 4h.

No dia seguinte, tenho que apanhar o voo das Nações Unidas para Kabul. Como sempre, apanho um táxi até ao inenarrável Terminal 2, de onde partem voos de companhias dúbias para Bagdad, Meshad, Teerão… O Terminal 2 dá sempre o ligeiro desconforto de se estar a viajar para sítios menos recomendáveis, em aviões não dignos de Terminal 1. Vejo anunciado um voo para Kabul com uma companhia aérea Afegã. Não é o meu! Onde está o voo das Nações Unidas? Ah esse voo agora parte do Terminal 1, não sabia? Obviamente, não.

Apanho um táxi para o Terminal 1, mais meia hora de caminho em auto-estrada à volta do mega-aeroporto, meia irritada com tanta confusão, meia contente por termos sido admitidos ao Terminal 1. No check in está uma fila de estrangeiros, meios entediados, mas prontos a voltar ao serviço. E gente de Kabul, todos se conhecem. Não a mim, desterrada a Norte do Hindu Kush. Para alimentar a sensação de upgrade, o nosso balcão check-in é ao lado do check in para Paris CDG e tudo! Os Franceses que passam por nós e vêem o nosso destino no televisor do balcão olham para nós perplexos. E nós devolvemos o olhar – podemos ir para Kabul, mas vocês estão a embarcar num avião da Air France, não é muito melhor.

O check in está fechado. Esperamos, esperamos - nada. O senhor da ONU aparece finalmente a dizer: todos os voos de Kabul estão em terra sem autorização para levantar, por isso temos que esperar porque o vosso avião é o que vem de Kabul. Mas sabe porquê? Houve algum incidente? Não, não sei porquê.

Pensativos, reflectindo na ofensiva Americana em curso em Helmand, sentamo-nos outra vez à espera, não sabendo se, na verdade, queremos ou não que o avião chegue. Duas horas mais tarde o senhor anuncia que o avião levantou de Kabul e vem a caminho. Ok, seja o que deus quiser.

4h depois aterramos em Kabul. A saída do avião está um senhor a perguntar “European Union?” e eu digo que sim, sem perceber a razão da separação de cidadãos europeus, e o senhor lá me encaminha para o primeiro autocarro. Lá dentro o senhor anuncia que vamos receber já um briefing de segurança. Briefing de segurança? Mas que é isto? Será que aconteceu realmente alguma coisa e estamos a ser evacuados para um sítio seguro? Mas então porque é que nos deixaram levantar de Dubai? O senhor começa então a distribuir telemóveis. Mas que raio, o que é que se passa aqui? Para que é que eu quero um telemóvel? Vendo a minha cara cada vez mais confusa, uma senhora aponta para mim e diz – olhe que esta senhora não é do nosso grupo! Percebo então que me meti numa delegação da União Europeia. Saio do autocarro e entro no que está atrás, onde estão as pessoas que não estão só de passagem.

Tum – outro carimbo no meu passaporto, saio para fora do terminal. Oláaa, onde é que eu estou? O aeroporto de Kabul parece estar numa constante mutação. Nunca, mas nunca chego ao mesmo sítio. E, claro está, não encontro ninguém da GTZ à minha espera. Como nunca sei se eles têm acesso a todas as partes do aeroporto, pego no malão e arrasto-o 500 m até ao outro terminal. Não está lá ninguém da GTZ. Estão no entanto dezenas de Afegãos a olhar para mim, meios espantados, meios no gozo. Telefono para a GTZ. Não saia daí, mandamos já um carro! Pensávamos que tinha perdido o avião. Olha que esta!

Meia hora mais tarde aparece o carro da GTZ. Finalmente vou para o hotel. Não sei porque que raz-me-parta escolhi ficar neste hotel desta vez. E horrível. O quarto não tem janela, a casa de banho pinga do tecto e o poliban está partido. Exausta, não quero saber, deito-me na cama de colchão duro como cornos de touro e tento a custo adormecer. Hoje de manhã mudei-me para outro hotel. Mais acolhedor, mais seguro, com comida boa e um polibam inteirinho e branquinho.

E escrevi este post.











4 comentários:

Anónimo disse...

Que Odisseia!
Nem Ulisses foi parar a essas bandas...
e os "cornos de touro"? era alguma piada para os tugas?
Pois, tão longe não sabes o que por cá se passa.
Beijinhos, bom banho, Mab

Anónimo disse...

Já tenho saudades tuas....!
bjnhs
J.

Anónimo disse...

Olha Filipa, reli o teu post. De todas as vezes sinto como que um murro no estômago. E digo: esta rapariga está na tropa. Não não está na tropa está na guerra.
Quantos anos já fizeste disto? Já leste Voyage au bout de la nuit? Não é muito pior.
Quando cumprirás, de vez, o serviço militar?
«Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo e bem!»
E voltarás, como um soldado da guerra.
E poderás contar aos teus filhos o que fizeste pela paz. Não és só cidadã do mundo; é O mundo que te deve algo.
És a minha heroina !
Bjs, Mab

Anónimo disse...

Filipa

Faço minhas as palavras do comentário das 10.57. De facto é o Mundo melhor que deve algo, a pessoas como tu.

bjs e até breve, mas...continua a escrever...!

MLJ