Respondendo ao comentário ao meu último post, temo não ter histórias de viagem que façam sonhar.
A inspiração e o exotismo deste sítio vejo-as nas imagens que mostrei: nas paisagens desertadas atravessadas no entanto por uma estrada alcatroada de primeira qualidade - como quem se prepara para um futuro bom por muito improvável que pareça agora; no camião decorado com bons augúrios escritos em (mau) Inglês - num esforço em alcançar e abraçar o outro; o mundo. E no velho tanque soviético reconquistado pelo mundo das telecomunicações - a absurdidade No Man's Landesca da guerra.
Contos destas viagens, de que me lembre... Existem, mas são para esquecer, não para inspirar:
Numa das viagens, somos ultrapassados por um jipe a alta velocidade. Mais à frente vejo o jipe abrandar e parar no meio da estrada. Há sempre aquele segundo, aquele ínfimo momento em que pensamos estarei em perigo? Há sempre um instinto de avestruz que nos diz não, isto não vai acontecer agora, que se interpõe e atrasa o raciocínio - o raciocínio que está a tentar avaliar subitamente e rapidamente a situação. Nesse ínfimo momento, como que em câmara lenta, vi a porta do jipe abrir-se e vi o cano de uma metrelhadora a sair, e um homem à paisana. Disse acelera acelera ao condutor do carro e ultrapassámos o jipe. Ao virar-me para trás, vi que o homem da metrelhadora se estava a preparar para, como se diz, arrear uma amarelinha à beira da estrada. Era só isso. Nada de mais. Mas foi numa situação semelhante que o carro de um colega levou 8 ou 9 tiros em Setembro passado - o carro dele era blindado, por isso as balas esmagaram-se dentro do aço e dentro do vidro, mesmo em frente ao lugar do condutor. E claro que ele andava por zonas bem mais perigosas que esta onde eu estou. Mas a hesitação daquele ínifimo momento em que se pensa será que isto vai mesmo acontecer?, o instinto de incredulidade que nos atrasa o instinto de sobrevivência é algo que me mete medo. E o meu carro não é blindado.
Outra história destas viagens, completamente diferente, é a das mulheres. Mais uma vez. Desta vez a das mulheres grávidas. O Afeganistão distingue-se de outros países por muitas coisas. Uma delas é o facto de ser o único país do mundo onde a esperança de vida das mulheres é menor que a esperança de vida dos homens. Isto num país com 30 e tal anos de guerra em cima, durante os quais milhares e milhares de homens se juntaram à luta, é bastante espectacular. Uma das razões pelas quais as mulheres morrem tão facilmente, é a maternidade. Assim que se casam (às vezes aos 8 ou 9 anos), as mulheres entram num ciclo de reprodução em que, basicamente, a gravidez age como contraceptivo. Só não engravida quem gravida está. Gravidezes trazem sempre riscos, aqui como em Nova Iorque. E aqui há a insalubridade geral, há o isolamento, a distância até ao hospital mais "próximo"... E há sobretudo a exasperante e ubíqua ignorância e estupidez de muitos homens aqui, que não autorizam a mulher a sair de casa nem a receber ajuda até ela se esvair em sangue. E depois se a coisa se complica mesmo, é arranjar um cobertor para a tapar bem e pô-la no dorso de um burro até à aldeia vizinha onde vive uma senhora que dizem que é parteira. E a mulher vai com sorte se lá chega viva. E o projecto de treino para parteiras que vim fiscalizar é tão mau tão mau que chega a ser perigoso, e estou a fazer o possível para o interromper.
Por isso estas histórias de viagem não me inspiram lá muito. Prefiro as imagens.