Vida

Estou outra vez em Kabul entre duas estadias na Europa.

Todas as manhas atravesso a cidade na carrinha Toyota Hiace da ONG para ir para o escritório. Durante a viagem, ainda penso muitas vezes será que alguém se vai pulverizar ali à frente (curiosamente penso "ali à frente" e nao "aqui à frente"), mas estou a comecar a ver Kabul como um sítio de vida. O antigo teatro ainda tem um frontao majestuoso, e entre os pilares do primeiro a estrutura de uma escadaria enorme ainda lá está a caracolar para o segundo andar, onde também já nao há paredes. E no res do chao está uma loja de materiais de casa de banho, de todas as cores e feitios, com vitrines bem cuidadas, que o empregado abre orgulhosamente para a clientela. Porque a vida continua e neste momento quem tem dinheiro quer reconstruir a sua casa. Pensar em ir ao teatro nao é para já.

Mais à frente estao uma série de "estabelecimentos educativos" com placards coloridos a anunciar "English language and computer classes". Chamam-se "Centre for modern languages and computer science" ou "Institute for English and computer training - streamlining, headstart, small group classes". A primeira vista é estranho ver ensino de língua estrangeira sempre associado a informática, mas pensando melhor até faz sentido: sao duas coisas estrangeiras de qualquer maneira sao esses dois conhecimentos quem abrem as portas a um salário bom, neste momento.

Ao passar ao longo do rio de Kabul (que agora está seco) vejo a entrada da universidade no meio do mercado, para onde entram grupos de raparigas de véu na cabeca, cobrindo o nariz e a boca com a ponta caída. Seja como for, o véu nao é uma burqa; estas raparigas conseguem ver a rua e as pessoas como deve ser.

No meio do transito há dezenas de jovens de bicicleta a pedalar desalmadamente, impondo-se corajosamente a jipes, carrinhas e camioes, com uma máscara cirurgica verde na cara - porque a poluicao em Kabul é intensa e mais vale prevenir que remediar, num sítio onde os hospitais pouco tem, e porque estes jovens nao querem morrer aos 45 anos.

Afinal, já nao estou a ver o mundo tao negro quando estou em Kabul. E ainda menos hoje, que marca uma data tao querida: há dois anos eu, ele e o camiao da Europcar comecámos uma vida a dois.

O miúdo dos pneus

Todas as manhas passo de carro por uma esquina onde estao os vendedores de pneus. Sete e tal da manha e lá estao eles a por a tenda em condicoes para acolher o cliente. Tem 11/12 anos de idade nao mais, olhos achinezados, cara rechonchuda, corpo rechonchudo, cabelo cortado à escovinha - o que nao é habitual aqui, e tradicional combinacao de calcas e tunica comprida - mas a dele é aos quadrados castanhos e pretos e nao branca ou cinzenta ou beje como a dos outros. Todas as manhas lá está ele, sempre atarefado, a rolar pneus arrecadacao a fora, e a tornar a correr lá para dentro para buscar mais, abrindo alas entre os colegas e a mandar vir, com o sobrolho sempre franzido como quem diz é pá estes gajos falam falam falam falam e nao dizem nada, meus amigos eu tou aqui é pra tra-ba-lhar.
Na apatia geral que caracteriza Mazar (estao 40 graus à sombra às sete da manha, minha gente), é o miúdo dos pneus que me acorda e me arranca o primeiro sorriso do dia.