Um marido tranca a mulher num quarto e nao lhe dá de comer durante semanas, a tal ponto que quando familiares a encontram cadavérica e a trazem para onde há ajuda, ela está tao fraca que morre.
Uma mulher foge de casa com os bracos e pernas cobertas de nódoas negras e feridas internas causadas por repetidas violacoes pelo cunhado. E encontrada pelos irmaos e assassinada em nome da honra da família.
Uma rapariga de 13 anos, de desespero ao saber o seu casamento com um homem de 60 anos aproximar-se, pega num fósforo e em gasolina e poe-se em chamas.
Uma mulher espancada pela sogra e pelas cunhadas que foge sem sítio para onde ir, refugia-se na mesquita e à noite é levada para a prisao onde fica sem saber porque e sem ninguém saber.
Comecei finalmente a trabalhar com a CCA, uma ONG Afega que gere um abrigo para vítimas de violencia doméstica, para evitar que casos destes atinjam consequencias irreversíveis. As mulheres que conseguem chegar a nós podem ficar em seguranca numa casa cuja localizacao só uma dúzia de pessoas conhecem. Podem ter acesso a uma médica, a uma assistente social e a uma advogada. Podem ficar o tempo que for preciso até a crise passar ou encontrar-se uma alternativa de vida.
Surpreendentemente, à excepcao de casos de violacao e de casos de pessoas de étnia Pashtoon (mais conservadora de todas), ao fim de alguns meses de mediacao com a família, as coisas assentam e as mulheres voltam para casa em seguranca, os casamentos forcados sao anulados, novos casamentos sao selados... Mas para lá dos bons desfechos, fica-me sempre uma sensacao de incredulidade. Incredulidade nao com a condicao feminina no Afeganistao; nao com a violacao sistematica dos direitos das mulheres. Incredulidade com o lado (des)humano da coisa. Com a ideia que um irmao prefira, à partida, ver a irma morta do que aceitá-la de volta após ela ter fugido e desobedecido. Que um marido simplesmente nao alimente a mulher e seja capaz de a ver emagrecer dia-a-dia até desfalecer. Que um pai nao aceite uma filha de volta depois de um divórcio oficializado por causa de maus tratos pelo marido escolhido por ele. Custa-me perceber que a imagem e honra da família se sobreponha a quaisquer sentimento de compaixao entre um humano e outro humano - ainda para mais quando há lacos de sangue; que a dinamica social e familiar no Afeganistao seja tao diferente da minha que seja normal um pai nao querer saber de uma filha que foi violada.
