Telemovel desligado.
Copo de agua para aclarar a voz apos varias chavenas de cafe.
Uma enorme mesa com dezenas de folhas de papel minuciosamente expostas por tema e ordem.
Telefone a dez centimetros de mim.
Tecnica de respiracao e relaxacao em curso. Inspira - expiiiiiiiiiiiiira.
Toca o telefone.
"Hello?"
Puro sotaque Britanico.: "Hi Filipa, this is the Children's Legal Centre, are you ready for your interview?"

Foi ontem... a primeira entrevista de trabalho da minha vida.

Manifest Day

É hoje! É hoje! O Dia do Manifesto.
Trinta mil coisas para acabar, alinhavar, handover note-ar, sem tempo para comer, para ir à casinha, desde as 8h da manhã a carburar adrenalina...
Até às 16h da tarde, hora da verdade.
É hora de ir ver o Manifesto dos vôos das gloriosas linhas aéreas humanitárias do Programa Alimentar Mundial para amanhã.
Qual estudante à procura do nome na pauta para ver a nota, percorro nervosamente as dezenas de folhas afixadas no painel da recepção do PAM até soltar um suspiro de alívio e felicidade ao ver:
UYL - KHT
Filipa Guinote UNDP Portuguese ID0415
Check in 11:30

E vem um novo pique de adrenalina: vou de férias! vou ver o Príncipe! Vou comer bife strogonoff em Cartum!

Eu sei que podia ser pior

Estou a chegar ao fim de mais um ciclo de seis semanas e preparo-me para, na quarta-feira a noite, voar para a Europa por uma semanita mais uma vez. Ha quem diga, com o conforto que o staff da ONU tem no terreno, e ridiculo dizer que apos seis semanas apenas se merece uma pausa de recuperacao. E verdade, a minha casa em Nyala e melhor que o apart onde vivi em Cartum no ano passado. E verdade, nao passo os meus dias a medir tamanhos de pulsos e a pesar bebes raquiticos com fome e malnutridos. E verdade nao tenho que me aventurar por estradas isoladas para levar material ou comida para uma populacao qualquer perdida no meio do nada arriscando-me a ser feita refem por um qualquer grupo armado que por la andar.

Sim podia ser muito mais dificil. E sim, era capaz de aguentar mais de seis semanas aqui. Mas quando vejo a data aproximar-se mal consigo conter a excitacao. E a antecipacao de ver o Principe. Mas nao so. E a antecipacao de ter privacidade, de ser anonima.

Ja me habituei as semanas de seis dias. Ja me habituei aos horarios das 09h00 as 21h00. Aquilo a que ainda nao me habituei e a falta de privacidade, embora goste muito das jovens com quem vivo (a excepcao da Alergica Mor). Aqui, os unicos momentos em que nao estou a comunicar com alguem sao as horas em que durmo e as sextas-feiras, em que me escondo no meu quarto a ver DVDs ate ficar esganada de fome e ter de por o pe la fora. Por isso e que estou tao furiosa com este periplo por El Fasher, que me roubou a minha sexta-feira.
Mas ao menos sei que daqui a uns diazitos vou ter de volta a minha vida privada. Com marido e tudo.

*!?**?????

Fui passar um dia a Zalingei e acabei por passear pelo Darfur inteiro nas ultimas 48h, gracas a inenarravel confusao que sao os voos da ONU. Ha sempre o classico problema de se ter reservado um voo para um sitio e o voo ser cancelado a ultima da hora. Mas o que me aconteceu foi mais um passo para a humanidade no mundo da incompetencia: reservar um lugar num voo que nao existe. Receber confirmacao para um voo que nao existe. No dia do voo, ver o meu nome preto no branco no manifesto, mas com um asteriscozito a dizer "no connection". Assim, tipo olha paciencia fica pra proxima, vais antes para El Fasher que tambem e bonito. Portanto ca estou na capital do grandioso Norte Darfur, onde ao menos tenho um escritorio e uma casa do PNUD e ha companhias aereas comerciais que me poderao levar ate casa amanha inshallah.

Porque é que cheguei ao potno de ter pena da minha chefe de escritório:

E uma académica especializada nas questões de "Género" (Gender), ou para simplicar: mulheres, que investigou questões de estatuto da mulher na sociedade, de relação homem-mulher, de percepção homem-mulher pelo prisma sociológico, psicológico, antropológico, económico, cultural, textual, natural, supra-natural etc... E veio parar a um sítio onde as mulheres querem acima de tudo não ser violadas quando têm que ir buscar água ou lenha. E onde ninguém, mas ninguém percebe ou se quer quer perceber a distinção conceptual entre género e sexo.

E uma expert em regulamentos e procedimentos do PNUD: contratar pessoal, gerir fundos do projecto através do famoso software Atlas, lançar appels d'offres para geradores de electricidade etc... E veio para a um sítio onde o responsável das finanças não sabe usar Atlas e é neste momento incapaz de dizer quanto dinheiro foi gasto e quanto dinheiro nos resta para o nosso projecto, onde só há um sítio para comprar geradores, e onde ninguém, mas ninguém respeita regras.

E alérgica a conservantes, farinha, nozes, leite, queijo, iogurte, natas, pó, picadas de aranhas, picadas de formigas, picadas de qualquer insecto voador e veio parar a um sítio no meio do deserto com tempestades de areia regulares, insectos em todo o lado, onde é practicamente impossível saber os ingredientes usados em qualquer prato culinário ou item alimentar.

E hiper-sensível ao calor e veio parar a um sítio onde estão 40 graus à noite e onde nem a electricdade de cidade nem o gerador aguentam ar condicionado por mais de 30 minutos.

Resultado, chegou neste momento ao ponto de:
- viver no escritório, onde o gerador aguenta ar condicionado
- não dormir mais de 3 ou 4h por noite
- desesperar os colegas de trabalho com tanta e tão inútil gíria de "género"
- deixar os coitados dos deslocados que têm que levar com a dita gíria de boca aberta de sono ou incredulidade
- tomar tantos anti-histaminicos que fica num estado de transe constante, olhos semi-cerrados, a enrolar a língua, e obcecada em convencer os miliatares da União Africana a darem-nos umas garrafas de whisky.

Eu já lhe disse que ela assim não sobrevive muito mais e que se calhar o que fazia melhor era voltar para Washington, para sua e nossa sanidade, mas ela não vai por mim!